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Desenvolvimentos contemporâneos em psicanálise e cultura

Updated: Aug 23, 2023

A pós-modernidade trouxe uma crítica muito necessária às grandes narrativas, mas, igualmente, impregnou a cultura com o cinismo e a ironia pertinentes à uma atitude de dúvida que, na verdade, muito prejudicou o esforço terapêutico.

Precisamos entender esse acontecimento desde os primórdios de nossa ciência.

Nas reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena, que Sigmund Freud conduzia todas as quartas-feiras à noite, se buscava fortalecer a cientificidade da psicanálise. O aspecto filosófico não poderia ficar fora desse esforço, e temos as cartas de Freud que nos mostram essa preocupação.

Compreendendo-se o contexto cultural da Viena de Freud, temos a relevância de Kant e dos filósofos pós-kantianos, incluindo-se Schopenhauer, Schiller e Nietzsche. Especialmente, era Nietzsche a quem Freud atribuía uma enorme riqueza de ideias—e, justamente por isso, Freud tinha o cuidado de o ler com cautela.

Ocorre que o Nietzsche que era lido por Freud não é o Nietzsche oferecido a nós por uma mídia que empobrece os grandes significados. Era o Nietzsche que admirava o poeta grego Homero como um “Médico da Cultura”. Nesta perspectiva, o teatro grego tinha uma função tanto pedagógica quanto terapêutica. Seus deuses, dentro de sua mitologia, não eram necessariamente “bons”, mas eram fascinantes, e assim convidavam o ser humano na direção da vida e do viver.

O que essa antiga herança filosófica comunica a nós hoje? Justamente, em relação ao cinismo e à ironia que tanto mal nos fizeram, nos permite desvendar o aspecto criativo do ser humano, e assim permitir que se expresse a vida, com o direito de ser vida, sem “mas” ou “porém”.

Em relação ao “mas” e o “porém”, vejamos o exemplo da arte Naïf. Ela era feita por pessoas que não tinham curso de arte, ou desprezavam a técnica. Naïf significa arte “ingênua” /” inocente”, e isso era depreciativo.

Porém, os quadros foram sendo admirados por sua beleza, e muitos, a partir daí, não apenas reconheceram seu valor, como se inscreveram em cursos de pintura Naif. Mas o que isso significava?

De forma bastante clara, significava que eles estavam se matriculando em cursos para aprenderem como serem ingênuos, como pintar como ingênuos.

A partir desse paradoxo, podemos nos conscientizar de que a vontade de expressão da vida está para além dos supostos limites e condicionamentos da racionalidade e da intelectualidade. Foram justamente os grandes precursores da psicanálise, Schopenhauer e Nietzsche, que deixaram claro que a racionalidade existe para estar a serviço da vontade de viver, que é a base da existência, e não o contrário.

Ainda em nosso exemplo, poderíamos perguntar: quem diz o que é ingênuo, e o que não é? O que é cafona, e o que não é? Por qual razão? Bem, na grande maioria das vezes, iremos encontrar apenas um jogo de poder; ou seja, algo que não é saudável para ninguém. Escapando dessa situação, podemos ter uma posição como a do pintor norueguês Odd Nerdrum: “Sim, eu quero, com minha arte, transmitir sentimentos. Sim, eu sou sentimentalista. Sim, eu sou cafona.” Portanto, ele tornou-se uma figura importante do Kitsch Movement (que pode ser traduzido como “movimento cafona”). Esse retorno à uma forma mais sincera de expressão, que repudia a ironia e o cinismo da pós-modernidade, está na origem de diversos movimentos contemporâneos, como a nova sinceridade, a metamodernidade, e a pós-posmodernidade.

Essas contradições, de movimentos e de contramovimentos, são o grito da expressão humana contra os enquadramentos sociais, nesta sociedade que é altamente excludente e inimiga da espontaneidade da vida. Nisto, evidencia-se o fato de que a aceitação da vida deve ser feita por inteiro. A razão disso é simples: o ser humano não quer compreender a vida, ele quer viver. Enquanto isso, as estruturas teóricas (incluindo os tão admirados algoritmos) só podem compreender.

Mas, o que significaria isso, aceitar a vida por inteiro? Em sua vida, Nietzsche lutou contra o pessimismo de Schopenhauer. Para isso, ele se fundamentava em Friedrich Schiller: se a existência deve ser exaltada, deve-se exaltar também as criaturas criadas pela existência. Schiller vê aí, na exaltação da existência, o nascimento da cultura: os pulos de alegria vão se transformar na dança, os berros de felicidade irão se consubstanciar nos cânticos. Portanto, a arte, que dignifica a vida, é também uma expressão da vontade que clama por vida. Mesmo se o destino for trágico, ele é transformado em uma bela narrativa que é digna de ser escutada, como a Odisseia ou a Ilíada, de Homero.

Talvez o mundo de hoje, depois de tantas notícias que nos atingiram dolorosamente, precise renunciar a muitas atitudes da pós-modernidade, em busca de uma maior sinceridade, bem como de um verdadeiro humanismo. O cinismo deve ser abandonado em prol da compaixão pelo próximo. O ser humano não deve ter vergonha de seus sentimentos. Assim, compreendemos que este não é o momento para quaisquer jogos de poder, mas para a relação de ajuda autêntica entre seres que se reconhecem como iguais.

É preciso ver que o aspecto ético não pode ser desconsiderado na psicanálise. Ele não deve ser visto como um moralismo, mas como a valorização incondicional da expressão da vida. A grande mensagem de Nietzsche, enquanto precursor da psicanálise e leitor de Homero—que era o médico da cultura—é esta: existe beleza em sobreviver. Sobreviver fisicamente e sobreviver emocionalmente. Esta, como a lição mais importante, é a ética da vida. Nada tem a ver com o moralismo de uma sociedade excludente, cuja hipocrisia Freud foi tão hábil em revelar.

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